quinta-feira, 26 de julho de 2012

Crônica de uma fuga anunciada




A saída dela causou estranhamento. O que soava diferente era o tom.  A melodia é a mesma, mas o tom é que mudou. Há voz nessas palavras.  É isso o que eu penso. Escuto o timbre estridente, o riso meio abafado quando passa pra cá o que é dela.  Esse muito que para quem lê é sempre pouco significa no geral o fim de uma contradição.

O silêncio de quem escreve é coerente. Dizemos sem falar – mas não é o bastante, não? A eloquência do silêncio funciona melhor cara-a-cara. A coerência da palavra e da ação – da escrita com quem escreve ... 
Quem lê é ávido pela vida – quem escreve, foge dela.

Bach compôs a arte da fuga  baseado no contraponto. Está inacabada, como toda obra.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Sobre o mundo de Kafka



As imagens que se misturam na cabeça no cotidiano são pequenos filmes que vamos, dependendo do caso, formando o que chamamos de memória e ligando ao que pensamos ser verdade. Assim, a literatura se divorcia da verdade por muito tempo quando encontra o fantástico. Esse fantástico que vem com Cervantes, com Verne, com Machado de Assis no passeio de rinocenronte de Brás Cubas.

Mas o fantástico vem com aquele que melhor compreendeu o sentido disso na modernidade: Kafka. Certa vez, quando acordei, me vi transformado num inseto monstruoso. O fantástico atinge o cotidiano em cheio. Ele o torce como um pano, não para aproveitar a água que escorre dele (esse líquido pegajoso que sai do pano de cozinha a gente chama de cotidiano). O que lhe importa, da maneira que vejo, é a beleza da torção. Os relógios de Dali não lhes parecem figuras torcidas e colocadas ao sol para secar?

A persistência do tempo – na mitologia grega, Kronos, o tempo, usa uma foice (decepou as bolas do pai, Urano, com ela) – uma foice muito semelhante a da morte. Camus fala que o suicídio é o único problema filosófico verdadeiramente relevante. Aparentemente, esse pensamento lida com a morte, mas está muito mais próximo à vida. A resposta do surealista à essa indagação é o além-escrutínio. Ou seja, não endeusa o logos, a razão analítica, que descreve, classifica e compara. Ele antes torna-se deus (ou como queira a matriz nietszcheana: um além-homem) e, nesse estado de assombramento, cria.

Mas a criação sureal confia no imaginário mais do que na análise. Kafka, voltando a ele, não deixa de ser um arguto e intenso analista, o que diferencia ele é uma minusciosidade de sua extrema criatividade.

O mundo kafkaniano contém pontes pensantes, homens transformados em insetos, nobres e castelos inalcansáveis, processos altamente racionalizados, contudo sem qualquer fim racional e muralhas cujo início ou fim, jamais se encontram.

Borges, Canetti, Deleuze, entre outros, falaram muito melhor sobre o escritor tcheco do que num pequeno espaço poderia comportar. O diferente é que cada leitor compartilha de um mundo a parte com um escritor - como podem achar que essa relação desapareceu? – o mundo de Kafka, então, para mim, é o lugar no qual compreendi a profundidade da crítica sociológica desse escritor. Explico melhor: ao olhar para a maneira como a sociedade criava seu cotidiano (..); correção, percebendo como o cotidiano é criado em diferentes lugares, mas sempre com mecanismos sofisticados para ocultar o segredo – essencial ao domínio -, Franz Kafka, um de meus mestres da desconfiança, mostrou como ninguém que poder, imaginação e segredo estão intimamente ligados. Por um lado, a “tirania da imaginação”, termo cunhado por Borges para falar de Cervantes, e por outro, Canetti, um crítico de toda forma de poder, inclusive a sonhada. Por fim, Deleuze, ao se referir à “trapaça do sacerdote”, nada mais mostra do que o poder ligado ao segredo e ao controle da imaginação.

Como última palavra, como não associar imaginação e segredo em Clarice Lispector num conto como o ovo e a galinha?  Escritora com maior poder não vi na literatura brasileira. Mas isso é mais fantasia, fica pra próxima.